Um dia vestimo-la com uma manga de câmara-de-ar reciclada, para a resguardar da chuva mas também evitar que pintasse de ferrugem a roda da mota, por ela atada ao candeeiro.
Fizemos uma espécie de cerimónia a preceito; o mano Nuno trouxe o cadeado enorme, novinho em folha, comprado na drogaria da rua e com ele ancorámos a Honda ao poste iluminado.
Naqueles dias éramos capitães da rua, futebolistas no impasse de alcatrão, ainda não prenhe de automóveis.
Telheiras ainda era quase isso mesmo; um penteado de velhos telhados, salpicados em quintas, entrecortadas por azinhagas de muros altos, semi-derrotados pela idade e a gravidade.
A mota era a nossa ponte juvenil para outras distâncias de férias de Verão e, no fim deste, as vindimas na Ribaldeira, onde amealhávamos poupanças para os próximos sonhos; umas botas novas de râguebi e, naquele ano, a corrente “à maneira”, de elos grossos, desafiadores dos recursos da malandragem, por aquelas bandas pululante.
Um a um fomos desengravidando o lar paterno. Primeiro o João, o mais velho, depois eu e, logo a seguir, o Nuno, e na rota cronológica da idade, o caçulinha Zé.
Todos! Menos a corrente que por ali ficou esquecida, cadeadada ao candeeiro, sem roda para guardar, despojo de um abraço de vida, de mil sonhos, partidas e chegadas. Noites de chuva, em que espreitávamos os raios de luz para confirmar a permanência ancorada do nosso cavalo metálico.
Foi preciso uma recém amiga ir dar aulas para o Colégio Militar e alugar apartamento mesmo em frente ao candeeiro acorrentado (e, cúmulo das coincidências, a roçar ombros com o antigo andar do Paulo “borbulhas”) para se resgatar da memória cega o tesouro elado.
Já não sei onde pára a chave do colossal cadeado que de tão seguro, no desafio à bandidagem, se revelou também agora perante as tentativas libertar o candeeiro daquele abraço enferrujado.
Mas sei que naquele instante de coincidências, pózinhos do Sininho do Peter Pan dançaram num raio de luz do velho candeeiro, ou por ele se despencaram nos nossos sonhos.
E nós, assim enfeitiçados, musgámos os olhos no coração, e nos tornámos meninos sem idade.
Castigo era corpo de muitos existires.
O dele, que se esquinava de dia para dia, no tardar do mata-bicho. E nos de tantos como ele, que às fomes do corpo somavam a de um arco-íris interior.
Aquelas molinhas que a vida nos pranta nos calcanhares do dia, quando se flutua no feitiço de um perfume mágico.
Homem que era também, de muitos quereres, Castigo se descobriu um dia, rebocador de ventos e marés, xicuembos seus e de sua morena e os tentou afunilar num mesmo existir.
Como se no olhar, fixo, para o horizonte da vida pudesse caminhar sobre os vidros sem verter gota de sangue.
Um dia, Castigo estendeu a mão para trás, e a sentiu vazia de metade de si. Para trás, algures na viagem, sua morena virou à esquerda em Tumbuctu, enquanto ele esboroava o caminho à sua frente.
“- É factura de guerreiro esta solidão?” – perguntou ao madala rendilhado, quando a Lua rendeu o Sol.”É possível cerrar os sentidos no estraçalho de espada alheia e mesmo assim divisar o Norte e o Sul, cardeais do existir?”.
Madala lhe sorriu, secando-lhe a lágrima-suor; “Guerreiro-homem! Teu existir se tornará semente de outros tantos, de cada vez que te sentares dentro de ti e acordares humilde. Refundido no estar e no amar, porque essa é a chave”.
Naquela noite, Castigo adormeceu menino dentro de si. Dormiu mil vontades de sonhar. Sonhou de novo, a vontade de amar.